quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Dia 04/12/2010 – Sábado / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra

O dia amanhece nublado, tomamos café da manhã com a temperatura despencando à medida que o céu fica pesado, escurece muito. Lá pelas 09:30 o vento ganha força e logo todos se agasalham, Léo já levantou de casaco e Chicão de jaqueta grossa. Lembramos do frio que fez durante o Festival Amazônia Em Cena na Rua em Julho deste ano em Porto Velho. Rimos muito quando me lembrei de um dia em que o Nivaldo e o Claudio, de Macapá, tremiam numa manhã do Seminário de Teatro realizado na praça das caixas d’água. Foi à manhã mais fria em muitos anos na cidade e região. Até o Kuka, de Salvador, andava por lá com um poncho (vestimenta usada pelos gaúchos na lida do campo durante invernos rigorosos) emprestado que o Chicão havia comprado em Porto Alegre em Maio durante o 7º Encontro Nacional da Rede Brasileira de Teatro de Rua. O que me fez lembrar do sul, do frio desgraçado que faz por cinco meses e que nos demais meses por vezes esfria também. Começo a entender mais e mais esta diversidade gigantesca de climas, culturas, tradições, hábitos e estilos de vida do brasileiro. Não há como compreender tudo isso sem vivenciar de fato, com mais profundidade e causa. Vivemos aprendendo!
A partir de hoje estabeleço mais uma atividade, com uma caderneta vou começar a anotar detalhes, trejeitos, frases, vontades, frustrações, histórias e diálogos do Pão de Queijo, o Rogério gaúcho. Vou escrever uma peça de teatro a partir ou sobre ele. Pão de Queijo executa a função de faz tudo, um cara simples e malandro que se assemelha muito com o Arlequim, personagem da Commedia dell’arte italiana. O cara tenta ao mesmo tempo servir o comandante (Pantaleão) e sua equipe (Briguelas, Zannis, Enamorados) enquanto procura nos guiar nas localidades, tem pinta de quem já navegou muito, mas não sei se é verdade. Diz que conhece tudo, fala do comércio, das pessoas e animais da floresta, histórias de pescarias, trabalho, patrões, mulheres, comidas, etc. Quando chegamos aqui em Humaitá, veio ao barco um menino de 12 anos com uma caixa de isopor vendendo caquí, que é uma espécie de suco num saquinho como o sacolé (no RS) ou din din (em Rondônia), mas aqui é chamado de caqui. Em menos de duas horas o menino já estava dando informações pro Pão de Queijo, dizendo onde tinha açaí e manga, como estava o movimento na cidade, detalhes da festa da padroeira. Em pouco tempo nosso Arlequim já sabia de tudo. Não bastando às informações logo o menino estava fazendo favores também, pois quando a Dona Branca ordenou que Pão de Queijo fosse comprar açaí este mandou o menino buscar, hehe, enquanto ficava arlequinando por aí. O cara é um personagem perfeito, o único real de carne e osso dentro desta barca mambembe que nos tornamos como as companhias mambembes na Europa entre os séculos XV e XVII.
Ao cair da noite, Chicão chega com a informação já esperada, fora muito difícil negociar, o padre e demais instâncias visavam a penas suas atividades que na maioria previa lucro total de vendas. Explico melhor. A paróquia desenvolveu nestes 134 anos de festa da Padroeira de Humaitá Nossa Senhora Imaculada Conceição, uma estrutura voltada para uma economia de arrecadação. Há nos entorno da Igreja e da praça uma série de bancas e barracas de vendas dos mais variados produtos. De brinquedos a lembrançinhas de santos e times de futebol. O negócio é tão lucrativo que chegam trabalhadores de cidades distantes como de Porto Velho por exemplo. No entanto há a proibição de venda de bebidas alcoólicas na feira, ficando reservado um canto próximo a delegacia de polícia para as tendas de cervejas e coquetéis mais fortes junto com um palco para bandas e som mecânico, mais os banheiros ecológicos do evento. Ali rola de tudo!!!!
Quando Chicão informou que somente o Léo apresentaria neste sábado e que no domingo não teria, justamente devido aos motivos que falei anteriormente, ficamos chateados. Mas quando fomos participar da produção da intervenção do Afonso Xodó passamos a entender melhor. Após a missa das 21h há um jantar, só que não é um jantar comum, achávamos que era um jantar com bingo, mas na verdade é uma janta-leilão. Durante algumas horas todos ficaram numa espécie de pátio cercado por muros gradeados com coberturas nas laterais. No centro há um palco alto onde ficava um senhor com microfone arrematando o leilão: - Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três! Vendida para o Senhor fulano de tal. No chão junto às mesas espalhadas ficavam mais quatro senhores, todos com microfones sem fio, eram leiloeiros profissionais, contratados pela paróquia. Eles realizavam um leilão da comida. Denominam um prato de papelão com uma galinha assada e verduras de “penosa”. Diziam: - Esta penosa agora sai por dez reais o lance inicial, quem dá mais? E assim ocorria o leilão chegando ao valor de sessenta reais cada “penosa”. Depois veio a sobremesa, um pudim, que também é leiloado chegando ao valor de cinqüenta reais. As famílias precisavam comprar esses pratos principais para comer decentemente junto com os demais alimentos complementares que são entregues pelos garçons. Há o status visível naqueles que compram, pois seus nomes são destacados no sistema de som de todo local.
Fizemos uma pressão junto aos organizadores para que Léo começasse logo, pois o chá de banco estava demais. Eu, Nivaldo, Chicão, Sidnei, Thallisson, estávamos com a camiseta do Projeto fazendo um paredão frente ao palco para lembrar da nossa intervenção. Chegada a hora Léo foi anunciado e lá veio Xodó chamando a atenção e cumprimentado o público arredio. Léo, sagazmente, foi pegando um por um dos leiloeiros para ajudar nos números de mágica, pois no inicio ficavam fazendo comentários ao microfone. Logo se calaram e Léo com maestria diante de tanta tensão para estar ali realizou uma brilhante intervenção. Tiramos o chapéu pra esse carioca! Particularmente gosto quando vejo um ator/palhaço colocar a tensão do ambiente na agressividade comedida de sua atuação. Léo em determinado momento foi pro grotesco e chegou junto a uma mesa de um grupo de senhoras, pegou o garfo e deu umas garfadas na comida, comeu falando o quanto era boa a comida. Mastigava e perguntava se ela havia gostado da comida da festa e se iria comer mais. Foi hilária esta cena kamikaze. Era o palhaço dilacerando os bons costumes do evento, todos riam muito desta extrapolação do comum. Léo ampliou assim o quanto pode parecer ridículo estes momentos em que um artista está mostrando seu trabalho e todos comem e falam sem percebê-lo. Como foi permitida somente uma intervenção de vinte minutos no intervalo do leilão, Léo finalizou lavando nossa alma e provocando a atenção do público que não desgrudava mais o olhar das proezas do Xodó.
Anelise e Tancredo junto com Chicão tentaram fechar apresentações do Manjericão e do Justino para amanhã. Falaram com uma irmã da paróquia sobre uma casa de recuperação que haverá uma festa familiar para os internos. Ficamos no aguardo para amanhã quando nos dará retorno.
Mais tarde visitamos um local chamado Coxa Morena, um sítio enorme com um casa de shows. Era a noite do forró, havia uma banda constituída de três vocalistas um baterista e um tecladista. É impressionante o quanto o tecladista tomou conta de várias funções nos shows depois do surgimento do Tecno-brega! No inicio sentamos pra refrescar a garganta e fiquei elogiando o pique do sanfoneiro. Depois de um tempo fui na área coberta para ver a banda, pois não sei dançar forró (uma vergonha!) e lá não encontrei uma banda completa, nem o sanfoneiro, só o tal tecladista fazendo loops de música pra música com aquela chiadeira estridente terrível do tecno-brega mal tocado! Mas em compensação os vocalistas arrebentaram, não deixavam o público parado, muito bons mesmo. Não ficamos muito tempo e logo voltamos pra festa da igreja, mas como a violência estava escancarada com brigas e polícia correndo com as viaturas resolvemos ir para o barco. Descemos o barranco com todo cuidado, pois havia chovido e estava um sabão, se escorregasse só pararia uns vinte metros depois nas águas do rio Madeira. Mas havia uma segurança na descida, o Nivaldo pegou o hábito de construir com enxada as escadarias nas localidades sem escadas de madeira. Até o momento esta foi a melhor de todas, Nivaldo virou o nosso arquiteto de escadas naturais.

Vamo que vamo!!

Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

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