quinta-feira, 17 de março de 2011

Dia 22/12/2010 – Quarta-Feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra



Eram 11 horas, debaixo de um sol fortíssimo de dezembro iniciávamos a última intervenção do projeto Banzeirando. O cortejo saiu do espaço do Coletivo Difusão, uma entidade que aglutinou muitos artistas manauaras em prol da cultura do Amazonas cuja sede se localiza a uma quadra do largo São Sebastião em frente ao Teatro Amazonas. Tivemos a participação de artistas da cidade também: Diego Batista, Felipe Fernandes, Sabrina Oliveira, ambos integrantes do grupo de teatro Vitória Régia. Diego e Felipe são também do Núcleo de Artes Cênicas do Coletivo Difusão. Caminhamos até o largo tocando e cantando, parte da equipe segurava as faixas do banzeirando, que estavam localizadas na lateral do barco e também trouxemos a faixa feita pela população de Caiçara.
O largo e o prédio do teatro Amazonas estavam cercados de arquibancadas e passarelas para o mega auto de natal da cidade, mas nada tirou o brilho do nosso encerramento com alegria e empolgação. Com as faixas no chão circulamos tocando em volta destas. Como num ritual de passagem agradecíamos a realização do projeto e todas as vivências que tivemos nestes intensos trinta dias. Como um trailer de filme passou toda jornada pela minha cabeça naqueles instantes. Era o final de mais uma etapa marcante no teatro de rua, no teatro da floresta, no teatro brasileiro!
Após a finalização fomos ao Coletivo Difusão trocar as roupas e depois do almoço pudemos relaxar e caminhar pela agradável cidade de Manaus. Estávamos em outro ritmo, talvez o ribeirinho, mais lento e observador, por isso ríamos quando chegamos à zona franca de Manaus e as pessoas enlouquecidas corriam, gritavam, buzinavam ofertas de natal, um consumo desenfreado e o povo banzeiro ali olhando e rindo de tudo. Estávamos em estado de graça. Chegava o final da tarde e antes de irmos para o barco que no período da tarde seria içado para linha de manutenção do estaleiro, voltamos pro Coletivo. Foi louvável o apoio do Coletivo Difusão nesta fase do projeto. Nos ofereceram o espaço do casarão de dois andares pra colocar materiais e bagagens, foi uma hospitalidade de dar inveja aos hotéis da cidade. Após a partida do pessoal do projeto, o Manjericão ficará dez dias em Manaus realizando intercâmbio com oficina de teatro de rua, debates e apresentações gratuitas pro artistas e interessados. Uma parceria combinada em outubro do ano passado entre o Manjericão e o Coletivo. Agradecemos aos amigos já citados, bem como o Allan, a Michelle, a Lídia, o Clayton, o Caio, o Paulo, a Bia, demais colegas do Coletivo e também os achegados do Circuito Fora do Eixo que tem dado o que falar pelo Brasil.
Combinamos as 19:30 no porto para nos deslocarmos de voadeira até o barco, onde haveria o último jantar, era a despedida e entrega dos certificados de participação. Chegando ao estaleiro lá estava o barco Comandante Nossa Senhora Aparecida na carreira de conserto. Carreira são dois enormes trilhos de madeira robusta que se estendem do fundo da água até os motores nas casas da subida da encosta onde puxam as embarcações com resistentes cabos de aço. O barco estava içado para a terra firme como no filme Fitzcarraldo, citado no diário do dia 07 de dezembro. Parecia uma premonição se concretizando.
Após cumprimentarmos a todos, enquanto o jantar não estava pronto, começamos a arrumar as malas que teriam que ser descidas amarradas em cordas devido a altura do barco fora da água. Para alguns só faltava recolher a rede de dormir e logo estávamos todos conversando e recordando a viagem. Nessas horas bateu uma saudade e ecoava na cabeça a velha máxima de sempre: faríamos tudo de novo se fosse possível! Não demorou pra todos pedirem para O Chicão e O Imaginário realizarem o Banzeirando 2, para outra direção, outros rios, etc. Nos divertíamos quando Pão de Queijo chamou para o jantar, o velho e bom amigo Pão de Queijo que deixará saudades também. Descemos e lá estava a mesa posta, como sempre, só que desta vez com mais requinte. Comemos bastante a grande diversidade de carnes e combinações. Após a comilança, Chicão buscou os certificados e começou a brincar entregando um por um aos participantes, não só os artistas, mas também os membros da tripulação que nos aturaram por intensos trinta dias. Depois mais um pouco de prosa com o comandante Zé Ribeiro e partimos para pernoitar na cidade, pois no barco inclinado e sem água não seria possível.
Retornamos ao cais de voadeira comandada pelo Marcelo e Pão de Queijo que já demonstravam tristeza no olhar pela despedida definitiva. A amizade não tem preço nestes caminhos e convívios fecundos que criamos no norte do Brasil. Nós artistas populares temos uma força, uma energia, um poder de transformação que muitas vezes perdemos a dimensão. Quando um ribeirinho mestre navegador diz que jamais esquecerá esta jornada, pode acreditar ele nunca esquecerá e contará essa história até o fim de seus dias, assim como nós. É nesse desvio do tempo que viramos parte da tradição oral de um povo, de uma região, de um tempo que passou e marcou época.
Muito obrigado aos amigos da tripulação do Comandante: Seu Zé Ribeiro, Dona Branca, Vania Passos e sua filha Jordana, Dona Luisa de Carvalho e sua filha Pâmela, o subcomandante Marcelo Nunes e os marinheiros de convés: Seu Zé Teixeira e Rogério Pena - o Pão de Queijo.
Um agradecimento muito especial, fraternal diria, pois fomos uma família de artistas mambembes, aos companheiros deste Bye Bye Brasil flutuante: Anelise Camargo e Samir Jaime, do Grupo Teatral Manjericão, do Rio Grande do Sul; Chicão Santos, Sidnei Oliveira, Thallisson Lopes, Sidnei Dias, do Grupo O Imaginário de Porto Velho; Tancredo Silva, do Acre; Nivaldo Motta, do Amazonas; Léo Carnevale, do Rio de Janeiro; e o multi artista e professor Claudio Vrena, de Porto Velho.
Que fique registrado aqui o agradecimento de toda Trupe Banzeirando a todas as localidades, comunidades e populações por onde passamos, bem como um agradecimento etéreo a floresta, rios e encantados pela recepção fantástica desses humildes artistas de teatro que na medida possível, com grande esforço, procuraram compartilhar do seu trabalho da sua arte. Até a próxima.
Eis o fim de uma jornada e inicio de outras.
Evoé!
Vamo que vamo!!
Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

quarta-feira, 16 de março de 2011

Dia 21/12/2010 – Terça-Feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra





São 5h da manhã e no barco o comandante Zé Ribeiro liga os motores. Partimos para Manaus. Uma viagem tranqüila neste rio cuja dimensão da largura é assustadora, existem partes que quase não se vê a outra margem de tão largo que é! Durante a viagem nos impressionamos com as águas escuras e claras do Rio Amazonas. Em certas partes deste o barco tem que se deslocar de uma margem a outra para escapar do pedral do fundo, o que torna a viagem demorada e cansativa.
Durante a viagem o povo do barco põe em dia as anotações e avaliações, alguns arrumam as malas, outros se exercitam. Mas na grande parte do tempo contemplamos a beleza desta região. No meio da tarde já estamos chegando no estaleiro de Manaus, nos impressionamos com a quantidade de lixo nas águas e margens, eis o sintoma de cidade grande onde o ser humano perdeu de certa forma a noção do estrago que causa a natureza. O comandante e os ajudantes atracam o barco junto a uma balsa no estaleiro.


Combinamos entre os artistas dar um passeio na cidade antes do anoitecer enquanto Seu Zé encontra uma boa proposta de conserto no barco. Saímos de voadeira até o porto de Manaus, caminhamos ate o centro e lá jantamos e conversamos sobre o estranhamento dos enfeites e decorações de natal na cidade. Muitos de nós nem lembravam da questão do natal daqui há alguns dias, um estranhamente total. Confesso que pra mim foi um choque! Andar na zona franca de Manaus depois de quase trinta dias num barco apresentando pra localidades que jamais lembravam desta data adorada pela indústria e o mercado de vendas. Aos poucos nos acostumamos também com a movimentação e aglomeração de pessoas pelas ruas e praças, menos a Anelise.
Voltamos para o barco, nossa última noite dormindo na terceira margem. Amanhã pela manhã última intervenção de rua, no largo São Sebastião em frente ao histórico Teatro Amazonas.
Vamo que vamo!!
Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 20/12/2010 – Segunda-Feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


O período da manhã foi curto, pois acordamos tarde desta vez, nos permitimos dormir um pouco mais que o de costume, afinal o projeto foi puxado até aqui e era preciso estar descansados e concentrados para a avaliação ainda na parte da manhã. Após o café subimos para parte de cima do barco, o dia era chuvoso, lonas baixadas nas laterais, cada um na sua cadeira numa roda media. Numa das extremidades havia o banner do projeto e uma filmadora, cada um teve seu depoimento gravado. Depois partimos pra uma avaliação mais coletiva, avaliando os prós e os contras. Tivemos choros e risadas, rememoramos momentos hilários e tristes. Discussão e desentendimento sempre há em qualquer lugar, não seria diferente num projeto desta grandeza e importância. Onde, de certa forma, quase tudo é feito de forma coletiva e o único espaço privado que se tem é o espaço de uma rede de dormir. Mas sobre tudo prevaleceu os bons acontecimentos, pois somos humanos. Lembro que usei duas metáforas para compreensão do que representou para mim os trinta dias de barco pelos rios da Amazônia. Uma foi a já citada outro dia, a importância de se sentir na terceira margem da cena teatral brasileira, onde dentro de um barco pelos rios do norte pude entender o que é fazer teatro nesta região e me entender como artista e a arte que faço. Saio mais lúcido e com maturidade ímpar sobre o país em que vivemos, essa diversidade cultural espantosa que merece respeito e mais atenção. A outra metáfora foi a partir de um breve conto do escritor Eduardo Galeano, onde descreve o momento em que um pai realiza o desejo de seu filho levando-o pela primeira vez para ver o mar. Diante da imensidão do oceano, o filho olha pro pai e diz: - Pai me ajuda a ver? Assim me senti diante desta imensa floresta, dos rios de grandes extensões, da diversidade de etnias e costumes, tradições e estilos ímpares de vida e sobrevivência. Eu sou o menino do conto e agradeço muito a todos por me ajudarem a ver tudo isso e o que mais ainda estiver ao alcance da nossa arte.
O que disse a pouco foi enquanto indivíduo dentro de um coletivo chamado Manjericão, dentro de outro coletivo chamado Banzeirando. Mas tenho certeza a partir dos relatos de Anelise e Samir que para ambos também foi um momento ímpar na vida estes trinta dias. O Manjericão apresentou em todas as localidades centralizadoras de grande porte, realizamos apresentações maravilhosas outras nem tanto, mas faz parte do jogo cênico de nossas vidas. Não depende só do ator mas sim de um conjunto de fatores para uma apresentação ser boa ou não. E tudo pode ser relativo, para o grupo pode não ter sido uma grande apresentação, mas para alguns espectadores pode ter sido até aquele momento, e talvez por um bom tempo depois, algo muito importante em suas vidas. Não temos o parâmetro nem a medida das coisas para saber, eis a efemeridade de todas as coisas humanas e vivas. Em suma foi um marco histórico em nossa existência sem dúvida, mudamos muito a partir daqui, o teatro transforma o artista constantemente!
Após a reunião que terminou de forma monumental e alegre, ríamos quando Chicão deu por encerrada a avaliação e desabou um toró de água incrível. Caiu o céu em forma de chuva. Descemos já com um pouco de frio e lá estava o almoço, um peixe assado na brasa, tambaquis de ótimo sabor. Pela tarde após a descansada na rede começamos a arrumar as coisas pessoais, amanhã chegaremos em Manaus e o Comandante Nossa senhora Aparecida ficará num estaleiro para conserto do equipamento detonado pela árvore gigante. Desde o acidente estamos navegando sem determinadas peças junto as hélices e leme, por falta de tempo e estaleiros bons. Os de Manaus são os melhores. Será uma longa jornada dia inteiro adentro do maior rio do Brasil.
Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 19/12/2010 – Domingo / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra



Saída ainda de madrugada para chegar cedo a Nova Remanso, um bairro/cidade que está em vias de emancipação, atualmente pertence ao município de Itacoatiara. Embora localizada no imponente Rio Amazonas não apresentou boas condições para nossa embarcação. Foi um parto o Seu Zé Ribeiro conseguir energia elétrica, a futura cidade está mais voltada pra estrada de acesso a capital Manaus, ficando assim de costas para as atividades junto ao rio. No pequeno porto encontram-se muitas embarcações de transporte de animais, com estruturas gradeadas de madeiras e resistentes. Há também um pequeno estaleiro onde se vê barcos em conserto e outros sendo construídos. Ainda pela manhã quando chegamos Chicão deixou uma tarefa para todos, que o coletivo de artistas realiza-se uma averiguação de locais para apresentação ainda hoje a noite. Todos em polvorosa saem para conhecer a cidade, alguns de moto taxi circulam por tudo, outros a pé. Logo lá pelo final da tarde chegamos a conclusão que por ser domingo e uma final de campeonato de futebol tomava conta da cidade o ideal seria realizar um cortejo coletivo pelas ruas próximas ao porto. Chicão concordou e nos preparamos para todos tocarem e cantarem como uma parada de rua e o Léo Carnevale realizaria truques de mágicas em determinados momentos que julgasse melhor e assim fomos. Lá pelas 20h saímos em caminhada da embarcação, todos com camiseta do Projeto Banzeirando mais adereços, instrumentos e folders. Tínhamos a banda, o apresentador Afonso Xodó, as Banzeretes – todas as mulheres do cortejo, o Homem banner – Marcelo, o subcomandante do barco. Paramos em diversos locais, mas cito os de maior relevância. Certo momento estávamos dentro da área de um bar de esquina, sentados três homens bebendo, mais o dono do local. Chegamos, paramos de tocar e ficamos na formação paredão banzeirando, todos de camisetas e sorrisos estampados. Xodó pediu licença e começou uns números de mágica enquanto bebia de seus copos para refrescar a garganta. Mas diante de uma breve conversa um dos senhores, o mais cheio de pose, disse que era ex-prefeito da cidade. Xodó riu com galhardia e seguiu brincando com este fato durante as próximas mágicas, mas no momento que o ex-prefeito foi participar não conseguiu dizer as palavras mágicas. Neste momento um dos meninos da cidade que acompanhava nosso cortejo saltou e disse que sabia as palavras, pois já vira num momento anterior. Xodó o chamou e colocou no ar a seguinte provocação: - Senhoras e senhores!... agora com vocês a prova de capacidade humana deste menino em fazer esta mágica que o ex-prefeito tentou e não conseguiu!!! Bem, a mágica consistia em passar um dado de esponja da mão de uma pessoa para mão de outra pessoa, dizendo as palavras mágicas: Humanium.... Erare.... est! Era sempre uma reprodução, Xodó falava primeiro e depois a pessoa dizia igual na entonação de mistério e magia, circulando uma das mãos no ar por cima da outra. Para surpresa de todos o menino reproduziu com uma destreza vocal melhor até que o Afonso Xodó. Foi sensacional aquele momento.
Seguimos o cortejo e havia um grupo de meninas que acabara de sair do culto de uma igreja próxima ao bar. Xodó convocou todas para um número embaixo das luzes do poste. Elas aceitaram e de longe poderia se ver um grupo de pessoas (artistas e público) numa linda imagem poética embaixo de uma única luminária em meio ao escuro da rua. A última intervenção foi outra vez uma grande coincidência. Noutro bar onde muitos bebiam a vontade e felizes da vida com som mecânico no volume máximo. Chegamos de mansinho, alguém pediu pra baixar o som, a dona do bar desligou, pois queria ouvir também os músicos e o palhaço mágico. Léo sentou-se a mesa mais cheia de pessoas e logo descobriu que o motivo da comemoração era a vitória no campeonato de futebol, tínhamos ali na mesa boa parte do time campeão e o goleador do torneio. Léo se grudou no grupo de jogadores e arrebentou, foi aplaudido de pé. Saímos em fanfarra e logo encerramos os trabalhos, agora só em Manaus para encerramento do projeto.
Mas mesmo que todo artista embora ame sua arte e tenha prazer em fazê-la ainda sim ela é um trabalho e ele merece outro tipo de distração, resolvemos ir num forró. Após o banho subimos o barranco e comemos uma iguaria especial da região, as bananas fritas e salgadas. São bananas verdes cortadas ao cumprido em tirinhas bem finas, após fritadas acrescenta-se um pouco de sal, ficam crocantes e saborosas muito degustadas por esta época. Depois todos de moto taxi se deslocaram para um sitio onde rolava o tal forró. Local movimentado, curtimos um som que uma banda fazia ao vivo, alguns dançaram, beberam, outros apenas apreciaram a linda paisagem do lago diante da lua cheia que se formava. Não demoramos muito por lá, além do cansaço amanhã permanecemos nesta localidade para realizar uma avaliação coletiva do Projeto Banzeirando – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia.
Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 18/12/2010 – Sábado / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra



Dia clareou e o barco Comandante Nossa Senhora Aparecida já roncava há horas os motores no Rio Madeira em busca da Cidade de Urucurituba. Durante o percurso de aproximadamente 6h, eu e Anelise conversamos demoradamente com o Sidnei Oliveira e Sidnei Dias sobre a Antropologia teatral, sobre a preparação do trabalho do ator, independente de qual tipo de teatro fará e sobre as pesquisas do Grupo Manjericão e do Grupo O Imaginário. Trocávamos idéias sobre muitas teorias: Presença cênica, ações psicofísicas, transiluminação, corpo sem órgãos, biomecânica, commedia dell’arte, distanciamento, didática da cena, a explosão do espaço cênico (rua), etc, etc. Obviamente muitos caminhos semelhantes e muitas vontades idênticas, tanto na teoria/prática quanto nas dificuldades de manter um trabalho continuado, pois para sobreviver é necessário ter espaço físico e correr atrás de editais, prêmios e eventos cênicos.
Chegamos as 11h em Urucurituba, logo se avistava um cemitério caindo no rio Madeira. A cidade era mais uma que o rio engolia com o passar dos anos e as cruzes ficavam rentes ao barranco que desmorona lentamente. Aportamos numa balsa enorme que servia de estação para os recreios e mercadores, chamada de “Abrigo Municipal João Coutinho”. O incrível era que a balsa de grandes proporções estava amarrada somente por uma corda azul grossa com alguns nós a uma frondosa árvore em cima do barranco de trinta metros de altura, como se fosse um grande laço de fita sobre posto encima de uma grama verdinha. A balsa boiava sobre enormes troncos corroídos pelo tempo e amarrados a ela haviam mais de uma dúzia de barcos incluindo o nosso. Em tempos de enchente se durante o sono de todos um dia o barranco levar a árvore levará também a balsa e as embarcações que nela estiverem amarradas. Impressionante!
Pulamos do barco para conhecer a cidade que a população está abandonando. Fomos descobrir o porquê e logo soubemos por alguns moradores que era devido ao desmoronamento e falta de trabalho. Mas outros disseram que o governo do Amazonas está desenvolvendo a cidade de Urucurituba Nova, junto ao rio Amazonas, que possui ligação por terra a capital Manaus, gerando assim mais oportunidade de empregos e circulação de mercado. Outros que insistem em ficar na cidade citam que na verdade é uma estratégia pra tirar o povo da cidade velha porque haverá a extração de um minério muito valioso, que ainda é pouco conhecido. Aqui se mostra uma situação complexa, os moradores até disseram o nome do minério que realmente é estranho, nunca ouvimos falar, mas que terá grande valor no mercado futuro. Algo que foi descoberto primeiramente via satélite e depois confirmado que o melhor deste minério no mundo todo está exatamente embaixo desta cidade. O governo já estava com um projeto em pauta para estrada de Urucurituba velha. Mas qual será a verdade?
Na caminhada de produção e definição do local das apresentações fomos visitar o cemitério, lá percebemos a presença fortíssima da comunidade judaica, a julgar pelas lápides e ferragens bem trabalhadas em estilo judaico. Depois quando fizemos uma roda de memória no barranco junto a árvore da corda azul, um senhor dos mais antigos por ali, disse ser descendente de judeus que ajudaram a fundar a cidade. Era mais uma comunidade em busca de trabalho e paz. Encontramos também algo raro, havia numa casa estampado no alto da parede da frente um distintivo do time do Grêmio, com mais observação notei dentro da casa que havia na geladeira o maior adesivo que já vi até hoje do Grêmio, do tamanho da porta desta. Fui ver se conversava com o morador, mas não consegui. No mais a cidade era constituída de igrejas das mais diversas religiões, uma agencia de correios, o posto de saúde Santa Verônica que raramente tem atendimento, um mercado de médio porte, muitas crianças e urubus e um clube.
Após o almoço, à base de peixe, conversamos com as crianças da comunidade, alguns haviam almoçado no barco. Léo pegou meus mapas do norte e deu uma aula para elas sobre a itinerância do Banzeirando pelos rios até ali. No meio da tarde chegou um barco de passageiros e mercadorias, em meio a toda movimentação surgiu um menino vendendo bolo de macaxeira, uma delicia, foi nosso café da tarde. Enquanto seu Zé Ribeiro eviscerava e cortava em filés uma grande quantidade de peixes Tigre, de tamanho de um metro cada, ficamos impressionados que os adolescentes, em média de 15 anos, foram os carregadores dos fardos de pacotes de arroz, açúcar, farinha que o recreio trouxe para o mercado. Subiam a escadaria muito alta com fardos de 60 quilos nas costas. Na seqüência Chicão chegou com a definição do local das apresentações do Léo e do Manjericão para a noite, no Centro Social João Soares Ferraz. Começamos a nos preparar no cair da tarde, enquanto os trabalhadores da cidade voltavam com suas voadeiras, quando ficamos prontos já em inicio de noite notava-se umas trinta voadeiras estacionadas junto a balsa.
Chegada a hora, em torno de 19h, Léo começou sua apresentação, depois as 20h foi o Manjericão num calor escaldante. O Centro Social João Soares Ferraz que era constituído de um enorme salão cercado por tabuas altas e algumas lâmpadas comuns. Um detalhe interessante era que tínhamos horário para término devido a uma festa de aniversário ou casamento na casa em frente, pois o barulho e ajuntamento, segundo a moradora da casa e líder comunitária, atrapalhariam a festa que se estendia na rua em frente à mesma. Assim cumprimos e às 21h tudo havia terminado. O curioso da apresentação do Manjericão foi que na cena da mulher barbada, feita pela Anelise, o escolhido para ser o enamorado de Zuleica Peludiskaya, cuja metade do coração ela sempre deixa com este, foi o gremista da casa que mencionei anteriormente, foi muita coincidência. Outro fato curioso, mas de risco dos atores era a quantidade de insetos junto às lâmpadas do salão, mas em especial duas que ficavam exatamente em cima da roda. Tínhamos que ter o cuidado para falar pouco e com projeção de voz comprimida cada vez que estivéssemos embaixo delas, se abríssemos demais a boca era possível engolir insetos e se engasgar, digo isso porque em determinamos momentos no inicio da apresentação aconteceu exatamente isso. Foi uma grande dificuldade.
Ofício cumprido fomos para o barco que logo pela manhã entraríamos no Rio Amazonas finalmente, deixando o Rio Madeira para trás.
Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

Dia 17/12/2010 – Sexta-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra



Pela manhã do 26º dia acordamos com um grande burburinho de muitas pessoas negociando peixes em duas embarcações bem próximas. Logo descobrimos que se tratava de um barco comprador de peixes para a cidade de Porto Velho, o Riso do Mar I, ao lado estava o barco Novo Kim que fornecia peixes Tigre de até dois metros de comprimento, são da espécie sem escamas de couro branco acinzentado cheios de manchas pretas como tigres. Esta negociação ocorria numa lateral do Riso do Mar I enquanto que na frente deste chegavam os peixes com escamas, grandes Tucunarés de até dez quilos, trazidos do mercado da cidade, onde estavam estocados por outros pescadores. O curioso, além das dimensões dos peixes e a forma de manter congelados por dias seguidos no porão do barco abarrotados de gelo, eram duas crianças de descendência indígena. No meio de tanto peixe e muitos homens negociando as cargas que eram jogadas pra lá e pra cá, lá estavam duas indiazinhas degustando potes de iogurte de morango, se lambuzavam com gosto e pediam mais para suas mães que colocavam as conversas em dia enquanto embarcavam as mercadorias para alimentação da tripulação.
Chicão saiu cedo e conheceu um escritor do Amazonas. Marcou uma roda de memória com o Grupo imaginário e meio dia voltaram no barco com o ilustre convidado para almoçar conosco. Falamos de histórias recentes da região e da cultura que embora seja rica ainda carece de muito apoio e difusão do que se faz por aqui. No meio do almoço nosso convidado teve que partir, pois os compromissos com a festa da cidade eram grandes.
A tarde um chuvisqueiro tomou conta da cidade, aqueles que aproveitaram pra lavar roupas se complicaram, pois não parou até chegar a noite quando deu uma trégua para podermos nos deslocar até a arena ou anfiteatro como chamam aqui, mas é semelhante a uma arena de apresentação do Boi. Chegamos lá e observamos o Bosco apresentando uma por uma das atrações. São bandas que concorrem em sua maioria com musicas relativas à floresta e preservação da natureza. Realmente a cidade é bem cuidada e seu povo é culto e ambientalista. No encerramento do Festival houve o show da Banda de Manaus, a Badawera, fiquei impressionado com o vigor físico das bailarinas e bailarinos, uma energia contagiante. Foi só terminar o show da Badawera despencou um forte chuvisqueiro novamente. Nos deslocamos pro barco empapados de água.
Amanhã vamos pra Urucurituba, conhecida como Urucurituba velha, pois a população está abandonando.
Vamo que vamo!!



Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão