terça-feira, 2 de março de 2010

Carta Aberta à Secretaria de Cultura do Município do Rio de Janeiro

Senhora Secretária

Gostaria de deixar aqui escrito uma tentativa de descrever os sentimentos
que me ocorreram, e pensamentos que tive quando entrei em contato com o
texto do Decreto.(?!? )

Talvez tenha de me demorar um pouco sobre este assunto, pois ele é de
capital importância para o momento e para o mundo em que estamos vivendo e
acredito que ninguém, muito menos eu e a Senhora Secretária, podemos ou
devemos fugir dele. Espero não ser interrompido como fui no nosso breve
encontro anterior,

Assim vamos lá.

Eu tinha ido para esta reunião com o artigo 5° da Constituição em minha
mão , para declamá-lo diante de todos, pois para mim era esta a verdadeira
razão daquele encontro. Liberdade de expressão.

Art. 5°, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato;

Art. 5°, IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

Art. 5°, XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardo do
sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a.
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.

Porem, ao ler o Decreto fui agradavelmente surpreendido e desarmado por
ver seu artigo 1°, que citava justamente este artigo da Constituição.
Respirei aliviado. Estamos no mesmo barco, pensei eu.

Mas nos artigos, incisos ou alíneas ou parágrafos seguintes, ou não sei
bem o que é, o que estava escrito era uma seqüência de requisitos que eu
deveria cumprir para que pudesse usufruir desta liberdade constitucional.
Condições sem as quais eu não poderia exercer meu direito de cidadão livre.

Então eu estava livre, mas não estava muito. Eu era uma pessoa que estava
presa e agora ia ser agraciado com a benesse da liberdade condicional.
Estava ali me sendo oferecida a liberdade, sob determinadas condições que
eu deveria cumprir e respeitar, sob pena de novamente voltar a prisão. O
meu mal-estar cresceu quando compreendi que a discussão teria que ser
mais profunda e inquietante do que eu imaginava. Não estava diante de
pessoas que estavam pensando o mundo como eu. Embora a Senhora Secretária
tivesse afirmado que, por ser comunista sabia já das coisa que eu estava
começando a dizer, na prática esta teoria não se confirmava. Íamos ter que
discutir mais do que pensávamos, e não havia tempo para isto. Havia mais
coisas em jogo ali do que simplesmente nossas boas intenções, em relação ao
bem-estar da cidade e de seus cidadãos. E de que maneira a boa gestão de
políticas - públicas para a Cultura poderia contribuir para isto. A cidade
não estava em jogo, nem o seu cidadão, e sim a necessidade de aprovar
urgentemente, não sei porque motivo, aquele documento regulatório e
contraditório das atividades em áreas públicas, que estava diante de mim.
E eu, senhora Secretaria, sem voz e imobilizado, nada podia fazer, a não ser
pedir um tempo para pensar e propor alguma reflexão e discussão, a respeito
desta questão tão importante, já que, aparentemente, não estávamos ocupando
posições semelhantes diante do problema.

E assim, a discussão com os interessados que deveria ter sido feita,
antes até mesmo da elaboração do Decreto, e que iria ajudar nesta
elaboração, teria que ser feita ali naquela hora, sob pressão política e de
prazo. Companheiros da Rede de Teatro de Rua do Rio de Janeiro tinham várias
vezes antes tentado contato, sem êxito, com esta Secretaria.

Nós não achávamos que uma questão tão importante podia ser discutida às
pressas; e continuamos achando que não, dadas a sua importância e
atualidade. É realmente uma questão de tempo, Senhora Secretária. E não
podemos ser levianos e inconseqüentes a este respeito, pois o que for
decidido aqui no Rio de Janeiro vai repercutir no Brasil inteiro, e nós
estamos no momento de avançar em nossas conquistas de liberdade. Sempre
que os governos não conseguem equacionar seus problemas sociais a liberdade
é a primeira a ser sacrificada. Podemos estar "distraídos" diante disto
tudo? O muro de Berlim resolveu o problema da liberdade? O dia da
Consciência Negra resolveu o problema do apartheid social e racial da
sociedade brasileira? É possível distrair, descansar?

Senhora Secretária, esta Secretaria acho que ainda tem um departamento de
Patrimônio que foi criado na gestão do Antonio Pedro Borges, a frente da
primeira Secretaria de Cultura, do Rio de Janeiro. Pois bem, Senhora,
todos nós sabemos que Santa Teresa é uma APA- Área de Proteção Ambiental;
e que todos nós, gestores públicos e cidadãos, devemos zelar pela sua
integridade e identidade. A Senhora já viu o caos em que estão se
transformando as ruas e ladeiras de Santa Teresa? A qualidade de vida do
bairro é cada vez pior, o morador se ressente, enquanto floresce um
comercio, que só remotamente beneficia o bairro e seu morador. Os carros,
veículos de todos os tamanhos e pesos, sobem e descem suas ruas e ladeiras
indiscriminadamente , em qualquer direção, sem nenhum regulatório. Lá não
precisa? Uma vez só estiveram lá, que eu saiba, para obrigar o proprietário
de um bar-mercearia a recolher duas mesas da calçada, onde eu e outros
moradores há 30 anos costumamos nos sentar para conversar, sermos amigos,
cidadão, convivermos. Coisa rara em qualquer lugar do Rio de Janeiro.

O choque de ordem fez recolher cadeiras e mesas onde a vida comunitária se
estabelece, e onde pode nascer um remédio para a violência que nos deixa
desolados, numa cidade tão linda como a nossa. E deixa a tragédia anunciada
se aproximar cada vez mais!

O que está acontecendo ou querendo acontecer com o Teatro de Rua não é
parecido com o que aconteceu com as cadeiras e mesas de Santa Teresa?

A senhora não acha, Senhora Secretária, que tudo isto tem a ver com a
Cultura? Que a Cultura tem a ver com identidade e qualidade de vida? Que
qualquer política "regulatória" teria que ser submetida à apreciação da
Secretaria de Cultura e a Secretaria de Saúde? Para evitar atitude e
procedimentos que em vez de resolver, transformam a cidade e a vida do
cidadão em tristeza, depressão e mais violência? Não é esta a função da Vida
Cultural na construção da nossa identidade e cidadania? Não só na teoria,
mas também na prática?

Senhora Secretária, pela regra do Decreto, meu grupo de Teatro, o Tá na Rua,
não poderá ir nunca à rua, pois não se encaixa em nada do que o decreto
pensa. Quem o redigiu tem pouca familiaridade com a questão, embora possa
ter tido empenho e boa - vontade.

Assim como eu, outros artista de rua não preparam com antecedência suas
saídas, e muitas vezes saímos a rua sem saber onde iremos parar. Nem dia,
nem hora, nem local. E nunca obstruímos nenhuma praça, nenhuma rua, nunca
prejudicamos nenhum comerciante, nem nunca perturbamos o sono de ninguém ou
o trânsito.

O básico de nosso trabalho é o respeito à população e ao seu direito de ser
feliz, participando da vida cultural da cidade. Nunca iríamos fazer ou
fizemos coisas que ferissem a ordem pública, a verdadeira ordem pública, não
a ordem de uma gaveta vazia. Atitude que não parece ser a que subjaz
nestas medidas regulatórias abstratas, em nome de uma ordem também abstrata.
Sanear, higienizar não é organizar. Nós precisamos de apoio, estimulo, e
incentivo, não de organização aleatória e indiscriminada.

Nunca desistimos de nossa cidadania, pois amamos a cidade e seus cidadãos,
sem distinção de classe, cor, credo, idade ou religião. O nosso maior prazer
é respeitar o cidadão. Nós queremos ser parceiros do poder público na
construção de uma sociedade melhor. Não devemos ser tratados como presos em
liberdade condicional. Nossa liberdade foi conquistada ao longo de séculos
e de lutas e nossa liberdade não pode ser concedida. Ela tem de ser
reconhecida. Não posso me imaginar em praça pública somente se
estiver autorizado pela autoridade. Eu abandonei tudo por amor à cidade.
Sou cidadão carioca emérito. Não me tirem agora a cidade. Senhora
secretária, não deixe isto acontecer. O momento é histórico e importante. O
que fizermos agora vai, como já disse, repercutir em todo País. Se
decidirmos bem, ficaremos todos, nacionalmente um pouco mais alegres. Se
perdermos a oportunidade estaremos fazendo como aqueles que querem a todo
custo tirar a esperança do Brasil. Agora que estamos crescendo, produzindo
auto-estima que poderá iluminar o aparecimento da nação brasileira.

Podemos fazer historia Senhora Secretária, ou sermos atropelados por ela.

Creia-me um seu admirador e antigo eleitor.

Obrigado pela atenção.

Rio de Janeiro, 18 de Novembro de 2009

Amir Haddad

P.S - A título de pós -escrito uma sugestão de procedimento para o manejo e
crescimento do Teatro de Rua na cidade do Rio de Janeiro.

Sugerimos que:

1. Para sair às ruas, os grupos de Teatro, cadastrados ou não,
deverão apenas comunicar a um Setor de Teatro de Rua, que deverá ser criado
pela Secretaria, que espaços pretendem ocupar e a partir de que hora.

2. O Setor, então, deverá informar ao comunicante as condições do
local, para orientação do grupo. E, sempre que necessário,
enviar para lá uma equipe da Prefeitura, que se encarregará da limpeza da
praça e de sua segurança, para que nossos artistas possam cumprir sua
tarefa em paz. Se houver necessidade de energia elétrica o Setor deverá
providenciar junto à Rio Luz a localização e a utilização do ponto de luz
mais próximo, sem ônus para o grupo.

A Guarda Municipal que estiver na região deverá ser estimulada a proteger
e assistir o espetáculo. Eles já fazem isto, porem com medo de serem
castigados. Terão assim melhorado sua qualificação para a função a que se
destinam.

3. O cadastramento dos grupos deverá ser feito junto à Rede de
Teatro de Rua do Rio de Janeiro, que se encarregará de manter atualizado
o cadastro do Setor de Teatro de Rua da Secretaria.

O grupo não cadastrado que comunicar seu trabalho ao Setor da
Secretaria estará automaticamente cadastrado e suas características ( nome,
formação, origem) deverão ser comunicadas a Rede que irá entrar em contato
com eles, para vinculá-los ao movimento nacional do Teatro de Rua.

4. Sei que os representantes da Rede Estadual de Teatro de Rua têm
pensado nisso que vou expor e que acho excelente.

Há grupos que além de andar por vários pontos da cidade, mantém o
vinculo permanente com as praças e comunidades onde têm suas sedes. Assim
seria interessante se este grupos se encarregassem da ocupação e
programação das praças onde estão sediados, ali desenvolvendo atividades
permanentes com apoio e cooperação da Guarda Municipal. Alguns de nós já
fazemos isto, mas sem nenhum apoio, estimulo ou segurança.

Poderemos melhorar, e muito, a vida na cidade, na região onde habitamos.

Sonhamos como uma cidade feliz e iluminada pela esperança.

A Secretaria de Cultura pode trazer saúde para a população carioca.

Não queremos poder, mas sim colaborar para a construção da esperança.

Trabalhamos no presente para um outro futuro, possível.

Atenciosamente

Amir Haddad

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