domingo, 2 de janeiro de 2011

Dia 06/12/2010 – Segunda-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


A Calmaria do dia


Logo cedo começa nosso 15º dia, metade da Jornada. As 05:30 é a saída do barco da cidade de Humaitá para a cidade de Auxiliadora, pequena localidade do Amazonas antes de outra cidade grande chamada Manicoré. Esta foi nossa maior viagem de uma localidade a outra até o momento, um dia inteiro. Todos aproveitam pra colocar o sono em dia, lavar roupas, arrumar as malas e bolsas, escrever relatórios e estudar, analisar o material coletado por fotos e vídeos. Tenho procurado nos dias de pouca correria manter meu treinamento de ator em dia. Hoje acrescentei à minha dança pessoal movimentos diferentes com base no que venho observando das pessoas e animais da região. Comecei com alongamentos, respiração, saltos e giros, sons e voz, depois durante a movimentação livre e improvisada, que chamo de dança pessoal, baseada nos termos da Antropologia Teatral de Eugenio Barba e o Grupo Odin, passei a somar movimentos do ambiente da floresta. São micro ações de partes do corpo que se aproximam dos movimentos dos botos, aves e o que tenho no imaginário dos índios, pois ainda não os vimos e pelo que percebo não veremos. São mímeses, em processo de investigação, do macaco, da onça, do lagarto, do povo ribeirinho, dos peixes: candiru e mandim, do lançar flecha e lança, etc.
Pela tarde, olhando de uma margem a outra apenas floresta e mata dos seringais, vez por outra uma casa ou barco de garimpo. Aproveito pra aprofundar a pesquisa sobre este vasto território amazônico consultando dois mapas da região para ver onde estávamos - tenho por hábito comprar mapas dos Estados que visito- na ausência de internet são eles que estão ajudando o Chicão e o comandante na definição de mais localidades de parada do Banzeirando. Também leio o livro que adquiri em Manaus há dois meses quando estive participando como jurado do 6º Festival de Teatro da Amazônia. Arqueologia da Amazônia, de Eduardo Góes Neves, 2006, Jorge Zahar Editor. O autor escreve sobre o meio físico a partir de pesquisas profundas realizadas por anos a fio na região, fundamenta o quanto é falsa a idéia de um lugar selvagem e intocado.
Góes menciona que longe da calha principal dos rios, estão localizadas atualmente a maioria das terras indígenas e nas terras ocupadas por ribeirinhos à margem dos rios encontram-se grandes sítios arqueológicos que demonstram ocupações indígenas de grande porte no passado. A Amazônia é ocupada há mais de 10.000 anos, em alguns casos por populações de milhares de pessoas. Desmistificando essa terra de “natureza intocada” e “última fronteira”.
Outras questões levantadas pelo autor são a política e ambiental, sobre o desmatamento, os conflitos por recursos naturais e a urbanização descontrolada, trazendo consigo as conseqüências de nossa dita civilização.
Esse problema ecológico é um fato que mencionei outro dia por aqui, há uma enxurrada de dragas no rio Madeira, incrível a detonação do leito e das margens pela sede humana por riquezas. O descaso do ser humano também é um agravante, vi muitos barcos chegando a Humaitá e as pessoas atiravam no rio embalagens plásticas, latas de cerveja, garrafas de refrigerantes como se fosse algo natural. Tínhamos vontade de ir à embarcação e falar do assunto, mas precisaríamos de seguranças e muitas horas para tal ação. No entanto há um fator curioso do processo ambiental por aqui. Na época de cheia do rio Madeira, quando transborda por longo período todo lixo é devolvido à terra, acredito que é aí que os governos poderiam iniciar ações mais efetivas de educação ambiental.
Outro ponto interessante levantado pelo autor sobre os rios da região é o quanto as cheias são benéficas para a floresta se desenvolver e a população ribeirinha praticar a agricultura. Quando ocorre o desbarrancamento dos terrenos adjacentes as áreas de cabeceiras dos rios, onde os sedimentos são ricos em nutrientes, estes são levados pela erosão e “... seu transporte pelos rios e conseqüente deposição em áreas mais baixas leva à fertilização destas a cada cheia anual, em um processo semelhante ao do rio Nilo, no Egito.” Muito interessante pensar que esta erosão natural que vejo todos os dias por aqui promove justamente um ciclo de sustentabilidade do complexo amazônico.


A turbulência da noite


A noite cai e ainda não chegamos a Auxiliadora. Mesmo sabendo dos perigos do Rio Madeira o comandante mantêm a navegação, restam duas horas para chegada. O Rio Madeira tem esse nome justamente pela grande quantidade de madeiras que vão de galhos e árvores pequenas até troncos gigantescos que descem com velocidade máxima em determinadas épocas. Comparando seriam como icebergs no degelo, às vezes vemos apenas uma parte do tronco e o restante pode ser muito grande. Um perigo iminente sempre! Foi isso que nos aconteceu lá pelas 20h, após a janta, um acidente deste porte. Estava falando com Chicão na lateral do barco junto às portas dos camarotes quando de repente passam galhos secos enormes batendo na caiçara. Corremos pra ver o que era e notamos os galhos sumindo no escuro. Corri pro segundo piso do barco pra ver se ainda enxergava o tamanho da árvore. Todos por lá tentavam o mesmo quando de repente um baque segurou o barco Comandante Nossa Senhora Aparecida I, leve tremor e uns gritos vieram do piso inferior. Estamos num blackout total. Desço correndo pela escada e vejo o pessoal junto com a filha e neta do comandante, ambas chorando, foram elas que gritaram de medo com a sacudida. O comandante parou o barco, pois este perdeu força: tensão no ar. Todos correm com suas lanternas de um lado para o outro pra ver o que aconteceu. Marcelo e Pão de Queijo mais o seu Zé Ramalho correm pra voadeira e saem a mil rodeando o barco. Todos muito apreensivos, não havíamos visto tal nervosismo nestes três. O barco vai parando, um breu total na noite. A energia do barco volta fraca, mas oscila por vezes numa ameaça de novo blackout. Só ouvimos o barulho das vozes dos amigos na voadeira. Percebemos as margens distantes do rio pelas lanternas dos pescadores. Via no entorno da embarcação temporais se armando, muitos raios no horizonte clareando a mata, pensei comigo se vierem na nossa direção vai ser um grande estrago. Percebi que o pessoal ficou um pouco perdido, onde estaremos? Há nestas embarcações um farol potente que auxilia na hora de aportarem ou quando se navega a noite, é manipulado manualmente pelo comandante. Mas não foi fácil demarcar um local para aportar e verificar as avarias, que suspeitei terem sido de boa proporção.
O barco Comandante Nossa Senhora Aparecida I passa por dificuldade, motores com menos de meia força para se deslocar quase que parando. O pessoal da voadeira volta e conduz empurrando o grande barco para um barranco desconhecido, a tensão continua em todos. Pão de queijo na sua empolgação de sempre apenas diz: - Calma gente! Ó, tá de boa, é normal isso acontecer. Já passei, ó, por mais de uma destas paradas ó! Deve ter sido poca coisa ó! Foi uma árvore das grande, mas já saiu não tá mais ai ó! O Márcião fica tranqüilo meu irmão. Depois vamo toca aí, ó, um violão de boa olhando as estrela! Tá beleza ó! Pão de queijo é uma figura, procura manter a calma até nessas horas, sempre rindo de tudo.
Chegamos nessa margem de alguma localidade desconhecida por volta das 20h e só víamos algumas lanternas de pescadores piscando para dizer que ali tinha profundidade suficiente pra aportar o barco Comandante Nossa Senhora Aparecida I. Quando vimos havia pescadores em três voadeiras nos auxiliando, empurrando o barco para o barranco mais adequado. Via-se ali uma solidariedade do povo das águas, assim como os caminhoneiros ajudam uns aos outros na auto-estrada. Situação que raramente vemos em determinados locais deste Brasil. Operação voadeira terminada, seu Zé ramalho que já estava de volta ao barco pegou umas cordas e duas estacas e pediu que jogássemos pra ele assim que pulasse nas águas e fosse à margem argilosa. Mas havia outro problema por ali, descobriu-se que é a localidade que mais tem jacarés no Madeira e o local era cheio de juncos na água, lembrava aqueles lugares propícios para os batráquios viverem (sapos e rãs, prediletos dos jacarés). Seu Zé pulou na água, desapareceu por segundos e retornou nadando mais a frente. Iluminávamos todo barranco e seu Zé batia com as estacas na argila para cravar mais fundo, conseguiu com uma e logo foi amarrando a corda. Pão de queijo e Marcelo estavam ainda na voadeira contornando o barco verificando o local. Logo os dois vieram ajudar seu Zé que antes de pular disse: - É nessas horas que a gente vê quem é macho!
Enquanto Marcelo e seu Zé cravavam a segunda estaca a base de marretadas, nosso amigo Pão de queijo se deslocava com a voadeira desligada, passeava sorrindo, apenas puxando pela corda esticada da mesma estaca, só no embalo. Disse: - Ó pessoal que maravilha, ó! Pra que ficar nadando, se desgastando, se é só puxar pela corda ó! Todos o assistiam parecendo um condutor de gôndolas na calmaria das águas quando recebeu uns gritos dos amigos que reclamaram que afrouxou a estaca por causa da fuleragem dele. Uma figura esse Pão de queijo. Após finalizar as estacas e amarras, nossos amigos foram averiguar o equipamento de controle de navegação. Depois de muitas tentativas com iluminação à luz de lanternas, o comandante Zé Ribeiro pediu para que subissem deixando o trabalho para o dia seguinte. Mas há uma suspeita de quebra da hélice e outras peças trancadas.
Todos mais calmos ficamos ouvindo os batráquios a coaxar enquanto relatávamos o que cada um viu e como se sentiu durante o acidente. Em seguida fomos rodeados de Pirilampos, os gaúchos diziam que eram vaga-lumes, mas o Vrena afirmava categoricamente que eram Pirilampos. Devido à carcaça diferenciada, vaga-lume é mais redonda e dura, já o Pirilampo é alongado de casco fino. O cara conhece! Argumentou que o vaga-lume chega perto da luz e o Pirilampo não, o que de fato aconteceu ficavam distantes da embarcação. Na seqüência peguei o violão e ficamos ali tocando e cantando acompanhados do som dos batráquios, imaginando os jacarés em volta, observando os pirilampos e contemplando as estrelas, que juntas à luz do luar iluminavam nosso luau.
Amanhã cedo o pessoal mergulhará novamente para verificar se temos condições de deslocamento até o distrito de Auxiliadora para um auxilio maior no diagnóstico do problema. Foi inevitável o trocadilho neste dia tão atípico!

Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

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