domingo, 2 de janeiro de 2011

Dia 07/12/2010 – Terça-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


Chega nosso 16º dia, passamos da metade da Jornada. Acordo e já estamos em deslocamento para o Distrito de Auxiliadora, os motores em propulsão média anunciavam que levaríamos mais tempo que as duas horas e meia previstas. Chegamos na metade da manhã e todos saltaram do barco como se fossem amotinados, era perceptível a necessidade de todos em tocar no solo.
Estávamos novamente em terra firme, inteiros e como sempre rindo à toa uns dos outros. Em determinado momento em que olhei pra trás e vi o Nossa Senhora Aparecida I inteiro na água, recordei-me da imagem do barquinho feito de Buriti que uma amiga trouxe de presente, do Círio de Nazaré em Belém. Estávamos em Outubro durante o Festival no Theatro Amazonas em Manaus e Wlad me chamou lá da entrada do teatro com o barquinho na mão encenando-o a navegar. Quando o peguei disse que era pra abençoar nossa Jornada. Só agora percebo o quanto é semelhante em muitos detalhes ao Comandante Nossa Senhora Aparecida I. Creio que estamos realmente protegidos.
Desde o deslocamento da outra localidade Anelise e Vrena estavam encantados pelos diferentes tipos de argila, quando chegamos então foi o delírio total por tamanha diversidade de cores: amarela, ocre, vermelha, marrom, preta e outras derivações. Ane teve que conter o desejo de levar quilos de argila, ficou só na imaginação a quantidade de esculturas e as técnicas que utilizaria. Só mesmo esses dois artistas plásticos, escultores de mão cheia, no meio de tantos atores, poderiam entender o valor desse barro colorido.
Quando retornamos ao barco, descemos numa rampa escorregadia de argila, uns 60 metros de altura, tão íngreme que representava aos olhos mais de cem metros. Choveu durante a noite e o terreno ficou perigoso demais. O Comandante Zé Ribeiro escolheu este local um pouco distante do porto/balsa, mais tranqüilo para analisar melhor os danos na embarcação. A rampa argilosa era semelhante a do filme “Fitzcarraldo” (1982), de Werner Herzog, onde mostra a grande façanha de um sonhador no auge do ciclo da borracha no final do século XIX em construir um teatro de ópera na Amazônia peruana. Em determinado momento o aventureiro resolve arrastar o barco a vapor de 160 toneladas para o topo de um morro em plena floresta, uma doidera. Tive a impressão que faríamos o mesmo, içando o barco rampa acima para manutenção.
O distrito de Auxiliadora é pequeno e bem estruturado com lixeiras, ruas largas apesar de não haverem carros, há somente motos bicicletas e um pequeno trator Tobatta que guincha todos os produtos pesados que chegam no pequeno porto/balsa chamado de “Ana Darck”. Lá vimos o Tobatta puxar um enorme freezer, ainda embalado da fábrica. Junto à entrada da localidade há conservado um seringal dos tempos da extração do ouro branco, registramos por fotos aquelas profundas canaletas conservadas pelo tempo. Caminhando um pouco mais descobrimos que a energia do distrito é produzida por um enorme gerador de força da Powertech. Uma hora mais tarde o encontramos, realmente uma potência o gerador, de uma marca de respeito e valor altíssimo, um investimento significativo. No momento Auxiliadora está em processo de emancipação da Cidade de Humaitá.
Quando vimos o tal gerador, Thallisson, nosso homem informática, ficou muito impressionado com a estrutura. Aliás, Thallisson é o único bailarino na equipe, integrante do Grupo O Imaginário, vive nos lembrando que a dança existe. Seja caminhando na mata, se equilibrando nos galhos e pontes ou simplesmente dançando em qualquer lugar, basta ter música. É nosso professor de dança e informática, sabe os atalhos nos passos ritmados e no notebook. Cursa Ciências da Computação na UNIR, Universidade Federal de Rondônia. Também é o responsável por colocar todo material no blog do Banzeirando. Também executa o trabalho hercúleo de sintetizar partes do Diário de bordo e terra, que escrevo prolixamente.
Voltamos ao barco perto do meio dia, seu Zé Ribeiro e demais empregados estavam juntamente com outros moradores do distrito trocando a hélice que havia quebrado. A árvore gigantesca extirpou completamente duas das quatro pás da hélice feita de ferro fundido maciço além de arrancar duas peças importantíssimas: o Pé de galinha, uma estrutura de proteção do leme, e a Barra, estrutura de ferro protetora de todo sistema de navegação submerso. Ou seja, navegamos por quase quatro horas com grande precariedade na maquinaria, como se andássemos num carro com os pneus furados e o motor pifando. É impressionante a capacidade de resistência e sagacidade de quem trabalha com embarcações diante das intempéries. O pessoal trabalhou na água barrenta sem enxergar um palmo diante do nariz, só com o tato. Não há óculos nem máscara para respirar pelo nariz, usam somente um bocal para respirar o oxigênio vindo por uma mangueira da bomba de ar comprimido.
Fui pesquisar sobre a diferença de coloração da água do Madeira e dos outros rios da região e descobri que devido a isso também são diferentes nos nutrientes para a fertilização das planícies de inundação. Goés, no livro “Arqueologia da Amazônia”, afirma que pela tipologia os rios cuja nascente se dá nos Andes (de juventude geológica) são conhecidos como “de água branca”, devido à coloração barrenta, cheia de sedimentos ricos em nutrientes. Estes contem mais nutrientes que os rios “de águas claras” ou “de águas pretas”, dependendo da coloração, cujas nascentes são no planalto das Guianas ou no planalto Central, como por exemplo, os rios Negro e Xingu, respectivamente, têm suas áreas de cabeceiras em regiões geologicamente mais antigas, fracas em nutrientes.
Chicão e o comandante, em breve reunião, decidiram que seria melhor zarpar para Manicoré, cidade onde poderia ser feita a aquisição das partes perdidas e colocadas num pequeno estaleiro da cidade. Assim seguimos em nossa segunda maior distância sem parada. No meio do caminho fomos abordados pela equipe da marinha do Brasil que fiscaliza a região. Passou duas vezes por nós um helicóptero da marinha e logo em seguida chegaram numa lancha, todos armados até os dentes com coletes e rádios transmissores. Entraram na embarcação e logo foram conversando com o Comandante. Pediram os documentos da embarcação e a sua finalidade por estas águas, checaram os dois pisos do barco, materiais e pessoas. Antes de partirem aconteceram situações curiosas pra não dizer hilárias. Quando o capitão da Marinha percebeu no piso superior o figurino da Guadalupe, um vestido rosa brilhante cheios de detalhes típicos da Guada, ele foi direto pegar com a mão perguntando ao comandante o que significava aquilo. Seu Zé Ribeiro explicou que era do pessoal do teatro. Em seguida perguntou pra que servia, mas Seu Zé nem começou a dizer e logo o capitão, ao ver o Samir filmando ele atraído pegando e passando a mão no vestido, saiu logo dizendo em voz grave e alta que não era pra filmar! Chicão até achou que o capitão da marinha referia-se a cigarro e levantou da rede num salto perguntando “quem está fumando aqui?”. Realmente, na nossa barca mambembe, até a marinha entrou numa situação cômica.
O capitão desceu junto com os homens armados que lhe faziam guarda, passou por mim e perguntou se eu era estrangeiro. Disse que era gaúcho, ele riu e perguntou se eu conhecia o vinho Jota Pe, pois havia ido no Município de Rio Grande e provado o vinho que gostou muito. Falei também dos vinhos Canção e Sant Germain, vinhos de valores acessíveis e bons como o Jota Pe. Falou que provaria na próxima, rimos, e ele embarcou na lancha verde oliva cheia militares. Logo chegamos a Manicoré, cidade grande do interior do Amazonas, está entre os dez melhores PIBs do Estado. Amanhã Chicão sairá cedo pra ver locais para apresentações.


Vamo que vamo!!


Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

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