domingo, 2 de janeiro de 2011

Dia 14/12/2010 – Terça-feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra

Saímos cedo para Vila Caiçara, pertencente à administração de Borba. A comunidade tem uma rua só, de quatro metros de largura. Não há carros nem motos e carroças, apenas bicicletas. Durante o dia a maioria da população é composta de mulheres e crianças, aliás, muitas crianças mesmo! Logo que chegamos era possível notar a multidão de crianças no barranco nos espiando. Em poucos minutos já estavam grudadas nos produtores, ajudado a divulgar as apresentações às 18h ao lado da Igreja. O entorno da Igreja era bem cuidado e limpo, o piso e a estrutura do largo eram perfeitos para apresentar teatro de rua.
A localidade em determinadas partes ficava aproximadamente sessenta metros de altura do nível da água do Madeira. Um barranco gigantesco para subir com o material. O peculiar daqui é a quantidade de árvores frutíferas plantadas a beira da estrada, todas possuem um dono e os demais cidadãos não tocam nas plantas sem autorização deste. Vrena conseguiu muda da árvore de cuia. Vrena comentou que existe o carité e a cuia. Carité é mais usado para fazer utensílios de cozinha e artesanato, já a cuia, em geral, somente para servir o tacacá e é raro encontrar árvore de cuia em Porto Velho, só a de carité.
Perto do final da manhã quando já estavam agendadas apresentações do Manjericão e do Nivaldo, Chicão me convidou pra pescar ali mesmo do convés do barco, no segundo piso. Mal tinha me preparado com a linha e anzol Chicão já foi puxando o maior peixe pescado na jornada até o momento. Um João Branco de meio metro de comprimento, bem pesado. Logo não demorei pra puxar um também e em pouco mais de uma hora já tínhamos um panelão lotado de peixes grandes. A melhor pescaria que fizemos.
Enquanto estivemos pescando a Anelise e Pão de Queijo foram convidados pela menina Vitória, que não havia desgrudado da Ane durante a divulgação das apresentações, pra registrar a presença de um macaco prego, o “Chico”. Depois foram ver o filhote de veado fêmea “Bibi”, que mesmo solto na mata se acostumou a vir nos fundos do terreno da casa da Jennifer pra tomar mamadeira. Anelise mais tarde me mostrou o vídeo que gravou e lá estava Bibi sendo amamentada numa pequena mamadeira pelas mãos de Jennifer. Uma jovem índia, linda, cuja imagem lembra o estereótipo de beleza da índia brasileira que se mostra nas mídias. É! Caiçara tem muitos encantos. Mais tarde Jennifer e seu namorado foram nos assistir e citamos na cena de entrada a Bibi como atração de equilibrismo entre os animais (que nunca aparecem) do circo.
Após o almoço vi uma cena que me comoveu muito, fez lembrar os tempos de pescaria na infância com meu pai e tios. Havia um pai com quatro filhos, um menino de uns três anos de idade, duas meninas de aproximadamente 06 e 09 anos, e o menino mais velho parecendo ter 13 anos, todos numa canoa junto ao barranco numa área de água rasa. Levantavam a rede de espera que pareceu ter deixado ali a noite toda armada, naquele canto esquecido junto às outras canoas carcomidas pelo tempo. Mas percebi que não era só para recolher os peixes da rede, o pai ensinava os mais novos como levantar e com que velocidade as partes da rede que contem peixe. Precisava certa paciência para manter o peixe preso na malha da rede. Dizia que quando levantar a rede e estiver mais pesada é peixe grande e que esta parte da rede deve ser alçada para dentro da canoa e só então empurrar o peixe com a mão para ele deslizar no nylon da malha no sentido do rabo para cabeça, assim sairia facilmente. Continuava explicando, se houver um galho ou toco de madeira preso na malha deve-se tirar com o mesmo cuidado do peixe para não arrebentar a linha que depois daria muito trabalho pra consertar e não teriam rede na água para pescar.
Bah! Uma lição de vida, transmissão de conhecimento e tudo mais que se possa imaginar. Via brilhar nos olhos do mais novo quando a rede tinha peixe, uma das vezes puxaram um de tamanho médio e ele vibrava naquela pescaria num canto esquecido do Madeira. Assisti ali a uma aula-espetáculo ou talvez a uma oficina ou uma lição de vida que já tinha esquecido. O que presenciei foi os ensinamentos e a memória viva passada de pai pra filhos, e foi sem dúvida parte do Banzeirando.
Lá pelo inicio da tarde chegou ao barco uma liderança comunitária avisando que havia ligado para a central de energia e não voltaria no dia de hoje. O pessoal havia comentado que só existe um lugar em toda comunidade que funciona celular de uma operadora, embaixo da Mangueira em frente à Escola. Chicão pensou melhor e solicitou a ela que nos ajudasse então a divulgar um novo horário ainda de dia, as 16:30.
Chegada à hora de apresentar Nivaldo foi à frente pra começar com o Dorminhoco, logo também estávamos prontos e subimos o barranco que levava primeiro a um campo de futebol com acesso as árvores frutíferas de onde se via a estrada. Aguardamos uns cem metros do local, Chicão veio ao nosso encontro e convidou para irmos ao camarim, o que nos provocou risadas, perguntei onde estava o camarim e Chicão apontou para uns bancos de concreto junto ao barranco, fomos até lá. Era o camarim do Banzeirando. Ali fora estruturado o espaço para ser um mirante da comunidade. Sensacional, estávamos à sombra de mangueiras, cupuaçus e cuias. Podíamos dali ver o Madeira de um lado ao outro e sua extensão até onde a vista alcança, quase infinita. Bem como toda sua imponente correnteza forte com muitos pedrais. Pedrais são aglomerados gigantescos de pedra jacaré nas margens e no meio do rio. Apesar do calor soprava um vento agradável, um camarim perfeito para o teatro de rua.
Enquanto Nivaldo provocava o riso alto da platéia a cada três minutos percebemos o temporal que se armava e a dúvida era se viria ou não em nossa direção. Quando estava imaginando de onde partiríamos com o cortejo vi que um senhor dizia que a chuva não viria pra Caiçara, pois ontem um temporal, que veio de Borba, já havia destruído grande parte da comunidade. Torci pra ele estar certo. Tínhamos um plano B, a sede coberta da vila, um pouco suja, mas poderia acolher o publico tranquilamente. Aproximadamente as 17:30 começamos um pequeno cortejo e logo no inicio eu como apresentador pedi licença a todos: - Senhoras e senhores, crianças e crianços, cachorros e cadelas, demais seres presentes aqui hoje, pedimos licença para apresentar nossos números circenses e o espetáculo O Dilema do Paciente. E se São Pedro resolver participar daremos juntos um jeito na situação.
Dito e feito, em menos de trinta minutos no início da cena da doutora (Anelise) e Brigela (Samir) inicia um chuvisqueiro que logo vira uma chuvarada. Foi uma correria danada, cem metros rasos, eu quando recolhia o tarol vi em meios aos riscos da chuva um menino correndo e rodando no ar o halteres do Herculino e pensava “Caramba! Aquilo é isopor e se solta facilmente!”. Também no meio da multidão o Samir corria gesticulando, como se o Brigela estivesse socorrendo o povo de um tsunami. A Anelise caminhava rapidamente com a sombrinha colorida da Mulher Barbada protegendo a gaita (sanfona) da chuva que agora engrossava de vez. Nem sei quem correu com o bumbo, as mochilas e o estandarte, mas logo estávamos organizando o público na sede coberta enquanto a líder comunitária varria o lixo de uma festa do fim de semana.
Continuamos com a cena da doutora Lascívia, depois a cena do doutor Nervalgina e por fim o monólogo final do Brigela. Salão lotado, a chuva passou e o calor diminuira, encerramos de forma espetacular mais uma peripécia no Banzeirando. Foi literalmente a situação máxima do ditado popular que o teatro de rua conhece muito bem “quem tá na chuva é pra se molhar”. Após a apresentação estávamos encharcados de suor e chuva, mas alegres com o feito. Depois de uma péssima recepção ao projeto na cidade de Borba, agora estávamos de alma e figurinos lavados e o oficio cumprido neste dia atípico.
Voltamos para o barco, pois já escurecia na vila e o blackout era geral. A janta estava pronta e lá estavam fritinhos e crocantes os peixes que pescamos acompanhados de rodelas de limão pra destacar o sabor destas iguarias do local. No convés de cima do barco curtimos uma noite estrelada, toquei umas músicas do raulzito, pra variar, no violão que o Vrena me emprestou pra jornada. Fomos dormir cedo, pelo menos pra mim dormir 21:30 é cedo, mas sem energia elétrica da terra fica complicado, o barulho do motor gerador no barco é altíssimo. Silêncio total no barco e em terra, somente a correnteza do rio a nos embalar, logo todos dormem.
Amanhã vamos para Nova Olinda do Norte, mais uma longa viagem.
Vamo que vamo!!

Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão


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