sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Dia 24/11/2010 – Quarta – Feira / BANZEIRANDO – Uma Jornada Teatral pelos Rios da Amazônia / Diário de bordo e terra


Saímos as 05:15 para localidade de Agro-Vila e Bomserá. Ficamos só durante o dia devido à energia elétrica, há no barco um motor extra, pequeno, que serve para as emergências da embarcação, mas o motor fica no convés e o barulho é demais.
Chegamos à localidade, aportamos junto a uma draga chamada Tubarão, gigantesca que puxa com cabos de aço uma pedra gigantesca, que servirá de contra-peso durante a extração clandestina de minério dos barrancos e do fundo do rio Madeira. Em seguida fomos de voadeira para a localidade de Bomserá, distante uns 20 minutos por água, chegamos as 08h na Escola Municipal de Ensino fundamental Alzira Falcão. A escola se resumia a uma casa de madeira com duas peças sobre pilares altos, surrada pelo tempo, sem pinturas. A turma tinha oito crianças que cursam do 1º ao 5º ano. O Professor Ednei Monteiro nos recebeu com surpresa, porque isso nunca aconteceu na Escola. Ele perguntou se a apresentação era para a noite, Chicão disse que seria naquela hora e com espanto e alegria nos conduziu a escada da sala de aula.
Léo começou sua performance de forma minimalista, pianinho, num crescente que ampliava na proporção que participavam as crianças. Elas quase saiam das cadeiras para que Léo as visse e chamasse para o próximo numero, principalmente o Wesley, Wesdra e Ana Kelly. Os olhos brilhavam, até a criança mais tímida foi abrindo o sorriso. Estávamos em seis pessoas, eles em oito mais o professor. Sala cheia, dia nascendo e a sensação de magia se instaurava naquele pequeno pedaço de chão amazônico. Olhei pra todos, fotografei, estiquei o pescoço pela janela e vi lá embaixo o rio Madeira, imponente dando vazão as águas turvas em direção ao Amazonas. Pensei, se todos pudessem circular assim por este Brasil gigantesco teríamos de fato um país muito diferente. Ainda acredito que será possível em breve muitas jornadas, caravanas, circulações, só precisamos manter a tenacidade da luta do teatro de rua.
Dá um orgulho danado fazer um caminho inverso aos exploradores que chegam todos os dias na Amazônia. Estamos aqui banzeirando, teatrando, aprendendo e contribuindo para ampliar o horizonte de expectativa de vida. Procuramos na medida do possível contribuir sem um rompante de aculturação Isto é no mínimo extraordinário!! Quando voltamos à voadeira, filosofamos bem no meio do rio, literalmente na terceira margem do rio, como Guimaraens Rosa escreveu no texto de mesmo nome, Chicão diz esta pérola “O improvável é o mais certo aqui! Não sabemos como vai ser!”, dá uma gargalhada e seguimos trovando como se navegássemos na terceira margem da cena teatral brasileira. Pensamos em alternativas para as premiações, editais, etc. Quase fazemos teatro na/de voadeira.
As 9:30 estamos de volta ao barco e logo saímos por uma estrada de chão batido com banners, cartazes, águas e um sol de rachar em direção a Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Maria Angélica. No meio do caminho ganhamos uma carona de um morador, lotamos o golzinho e logo chegamos à escola onde o Nivaldo já está preparado esperando o Léo para a intervenção. São aproximadamente cinqüenta crianças na área da escola. Léo joga longe o sapato preto do Afonso Xodó e todos caem na gargalhada seguindo assim até o final onde os dois fazem todos esquecerem o calor, as mazelas da vida, etc. Se for verdade o que Amir Haddad falou sobre o Circo Etéreo, um lugar no céu que acompanha o teatro de rua, permitindo um canal de comunicação com outros planos terrestres e espirituais de luz, estávamos diante de um momento sublime destes. Bravo!!
Houve um fato que parecia algo muito comum, mas não passou em branco pra mim, nem para o Nivaldo que depois veio falar comigo, vou relatar agora. Quando chegamos Nivaldo estava atrás de uma grade da janela da escola, esperava as meias que havia esquecido no barco. Enquanto Léo iniciava o Sidnei Dias foi buscar as meias. Estava fotografando e pensei na velha metáfora das grades das escolas atuais que pensam em pedagogias inovadoras e sempre ficam aquém, perfazendo um efeito contrário, desenvolvendo um processo de prisão e não de libertação. Lá estava ele, o palhaço, a arte presa atrás das grades, tentando ir para rua para transformar a si e a sociedade. De repente o Xodó chamou o Dorminhoco, este diz que está preso e brincam com esta idéia. Dorminhoco passa de uma janela gradeada para outra até sair pela porta da frente e seguem as cenas.
Já no barco à noite, passo pelo Nivaldo parado como estátua, toalha e apetrechos de banho numa mão e escova com pasta de dente na outra. Olhando para o nada, sério. Pergunto se está bem, responde sussurrando que está. Saio para frente do barco para estender as roupas, quando vejo está chegando perto do mesmo jeito contraído. Pára e escorado na “caiçara”, madeiras que protegem as laterais da embarcação. Mão na boca, todo contido como se quisesse falar algo, com muita dificuldade sussurra algo que não entendo devido a bagunça do resto do povo. Antes que eu pedisse para repetir Nivaldo já está aos prantos, chora bastante. Depois de um tempo com a voz embargada, diz: - Cara, hoje de manhã naquela escola tive uma experiência inesquecível! Deu longa pausa chorando, respirou e continuou dizendo o seguinte: - Eu tava já pronto de Dorminhoco, na cozinha esperando a deixa do Léo pra entrar em cena, quando de repente levei um baita susto com alguém me agarrando as pernas e apertando com força quase me derrubando no chão. Olhei ligeiro e vi uma menininha muito pequena agarrada nas minhas pernas na altura dos joelhos. Ela me olhava com olhar de surpresa e alegria e me perguntou: - Tu é de verdade? Rapaz, aquilo me arrepiou! Me passou pela cabeça tudo que tu possa imaginar. Enquanto respondia que sim, me perguntava qual seria a referência daquela menina sobre palhaço. Com certeza ela nunca viu um na vida, só pela televisão ou livros de colorir. Eu tava ali, real, verdadeiro. Então comecei a entender mais ainda a importância deste projeto, do que estamos fazendo aqui no norte do Brasil, dentro da Floresta Amazônica. Eu ralo pra caramba cara. Trabalho muito com teatro, humor, performance, palhaço, TV, palestras. Tem a Fetam (Federação de Teatro do Amazonas) que me dedico muito também. Às vezes não sou tão valorizado, até minha filha não dá tanto valor ao que faço, justamente por não ter esta noção, o valor desta vida que levamos. tô muito feliz com tudo isso cara.
Ficamos ali um tempo trovando sobre essas transformações sutis pela arte que todos os dias proporcionamos. Ficamos nos perguntando o que será desta menina no futuro, poderá contar para os filhos, netos e bisnetos que um dia viu um palhaço de verdade e falei com ele, abracei ele. Ou deixará a localidade na primeira oportunidade, indo para Porto Velho fazer arte ou fará arte aqui mesmo. Ou nada disso e será pelo menos um ser humano diferente a partir de hoje.
Nivaldo se alegra, damos gargalhadas brincando que poderá quem sabe ser até uma revolucionária da Amazônia. Vamos pra janta, pra não perder o peixe frito pescado por todos. Hoje peguei o primeiro Candiru (não comestível nesta região) ficamos finalmente conhecendo o tal vilão das águas. Tiramos muitas fotos. Após a janta vamos para o Distrito de São Carlos, devido à energia elétrica.
Vamo que vamo!!
Márcio Silveira dos Santos
Grupo Teatral Manjericão

2 comentários:

  1. Estou adorando acompanhá-los através desses preciosos relatos.Viva!
    Marcos
    Cia dos Inventivos

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  2. Estou adorando acompanhá-los através desses preciosos relatos.Viva!
    marcos
    Cia dos Inventivos

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